Pioneiros! Brasileiros descobrem cura de doenças em drogas psicotrópicas

PEDRO NAKAMURA E SÍLVIA LISBOA – REVISTA CLÁUDIA

Durante dois anos e meio, seguindo os mais padrões científicos, uma espécie de sessão semelhante aos rituais xamânicos foi reproduzida dentro do Hospital Universitário Onofre Lopes, em Natal, no Rio Grande do Norte. Porém, no lugar de xamãs, cientistas cientistas.

Em vez de tambores e cantos entoados pelos indígenas, a música vinha de uma playlist inspirada nas composições usadas pela União do Vegetal, uma sociedade religiosa espírita fundada nos anos 1960 com objetivo de promover “a paz e o desenvolvimento espiritual de seus discípulos”.

Vinte e nove pacientes com depressão grave resistente aos antidepressivos convencionais, em tratamento no hospital, foram recrutados para o estudo. Metade tomou um chá terroso feito à base de folhas de um arbusto misturado à casca de um cipó encontrado na Amazônia.

Conhecida como ayahuasca ou daime, a bebida provoca estados alterados de consciência, uma ação conhecida pelos povos indígenas na América do Sul desde tempos imemoriais, mas que até então não havia sido testado em um ensaio clínico com padrão ouro para testar a eficácia de novos fármacos .

“Foi o primeiro trabalho no mundo com um desenho experimental duplo-cego e placebo controlado a avaliação de uma ayahuasca para o tratamento de uma condição psiquiátrica grave”, alunos a cientista projeto Fernanda Palhano, cujo de doutorado originou o estudo. “Neste modelo, não se seleciona qual paciente tomaria o chá e qual tomaria ou placebo. A seleção é aleatória ”, explica.

Durante uma semana que se seguiu ao experimento, Fernanda e seus colegas colheram relatos dos pacientes e uma série de marcadores bioquímicos, hormonais e inflamatórios que pudessem dar pistas da ação no organismo da infusão. Os resultados impressionaram.

Na avaliação feita neste período, 64% do grupo que havia bebido o chá de ayahuasca real teve uma diminuição dos sintomas contra 27% dos integrantes do tempo controle que ingeriu o chá falso. O dado mais surpreendente foi o do fim dos sintomas. Do grupo que apresenta melhora, cerca de 36% não tinha mais sinais depressivos, contra 7% do tempo do placebo.

Todos os pacientes, no entanto, foram informados que tomariam a ayahuasca, uma infusão de gosto amargo que pode provocar vômitos. “Pedimos a eles que pensassem num desejo, numa dúvida ou problema que serviria como fio condutor da experiência”, teor.

Ilustração de uma estatua de mulher branca com procedimentos de flores e folhas
Foto Pexels • Caminhadas Palmiro Domingues / CLAUDIA

Fernanda, então doutoranda do Instituto do Cérebro (IC) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, conduziu o experimento inédito ao lado de Dráulio de Araújo, pioneiro no estudo dos psicodélicos no país. “Embora uma pesquisa científica realizada no sul global tenda a ter menos visibilidade, sabemos que temos o potencial de liderar este campo do ponto de vista mundial”, anima-se a antropóloga Beatriz Labate, diretora-executiva do Instituto Chacruna, uma entidade sem fins lucrativos dedicados à pesquisa e ao conhecimento sobre medicina à base de plantas psicodélicas, sediada em San Francisco, nos Estados Unidos.

O estudo não seguiu para avaliar se o efeito do tratamento perdurou por mais tempo, mas abriu uma nova frente de pesquisa que colocou o Brasil na vanguarda do renascimento psicodélico mundial. O país se beneficia da autorização da ayahuasca para uso religioso e científico desde 1987.

“Temos uma certa posição de destaque por conta da pesquisa com a ayahuasca, mas já há projetos encaminhados a serem feitos com psilocibina (uma substância presente em cogumelos), e um já feito e publicado com MDMA (o princípio ativo do ecstasy), que também está nesse rol ”, explica a psiquiatra Luís Fernando Tófoli, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Conforme ele explica, a lei de drogas determina que a Anvisa pode estabelecer a legalidade para uso experimental. Isso não reduz, no entanto, como burocracias que solicitam pedidos formais de autorização à agência que regula os medicamentos nem como interferências políticas que colocaram o Brasil em desvantagem nas pesquisas com a maconha, por exemplo.

Recentemente, o Governo Bolsonaro votou contra a retirada da cannabis da lista das drogas mais perigosas, em que figurava ao lado da heroína desde 1961, uma sinalização de que não reconhece o potencial terapêutico da substância, em descompasso até mesmo com uma academia americana.

“A universidade nem sequer consegue plantar, fazer suas próprias cepas de maconha. A Unicamp teve um pedido negado mês passado ”, lamenta o neurocienrista Sidarta Ribeiro, também do IC de Natal. “Estamos ficando para trás na revolução do século 21.”

Em 2018, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), da qual Sidarta é um dos diretores, se posicionou a favor da legalização e fortaleza de todas as drogas no país. A moção, aprovada por unanimidade e encaminhada às autoridades brasileiras, defende uma política de drogas “progressista e não proibicionista, orientada pelas melhores evidências científicas disponíveis nacional e internacionalmente, e livre de dogmatismos e preconceitos”.

“O que a gente precisa para um uso responsável e não abusivo é religião, bula, posologia, controle de qualidade, acompanhamento psicoterapêutico capacitado. A ideia de que uma proibição protegida é um equívoco. Pessoas que nem usam podem tomar tiro por causa disso ”, observa Sidarta, referindo-se às mortes de jovens e crianças nas favelas brasileiras causadas pela guerra às drogas. A posição de uma das maiores entidades de ciência no país não parece ter sensibilizado o governo atual.

Não se sabe exatamente o que causa o efeito antidepressivo da ayahuasca: se é uma mudança na bioquímica cerebral, a experiência mística ou ambos. Uma das hipóteses tem a ver com o aumento da disponibilidade de serotonina, neurotransmissor que regula o humor e o bem-estar.

Fernanda explica que psicodélicos clássicos, como o famoso LSD; uma psilocibina, dos cogumelos; uma mescalina extraída do cacto peiote; e a DMT, a substância presente na ayahuasca, atuam nos mesmos receptores cerebrais que os da serotonina, causando efeitos paralelos de alguns antidepressivos, sem os indesejáveis ​​efeitos colaterais ou a demorar para surtir resultados, um problema sério no tratamento convencional do depressão.

Mas o impacto pode ser ainda mais profundo. Um estudo conduzido também no IC, por Sidarta, em parceria com Stevens Rehen, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mostrou que os psicodélicos atuam na formação de novos neurônios e sinapses cerebrais. Sidarta e Rehen investigaram o efeito do LSD no cérebro de roedores e constataram que uma substância é um potencial estimulante cognitivo.

Sob o efeito do ácido lisérgico, os animais de diferentes idades obtiveram uma melhora no desempenho nas tarefas. A proteção contra o declínio mental abriu uma nova frente de pesquisa no Brasil. “São sete artigos no mundo todo que mostra o efeito dos psicodélicos no aumento da produção de neurônios ou sinapses. Quatro deles são brasileiros ”, afirma o neurocientista.

Cientistas como Fernanda e Sidarta estão particularmente interessados ​​nas experiências psicológicas provocadas pelas substâncias e não apenas nos efeitos seus neuroquímicos. Não raro, após as sessões, os pacientes descrevem terem sido arrebatados por imagens e vivências intensas que os fazem rever crenças – indígenas e caboclos classificam esses transes como uma cura espiritual. Os psicodélicos afetam um conjunto de pontos cerebrais, como as áreas de funcionamento-padrão, que mexem com a percepção do “eu” e memórias autobiográficas.

Segundo Tófoli, há estudos com psilocibina mostrando que pessoas com experiências místicas intensas têm mais chances de se manterem abstinentes do cigarro. “Os psicodélicos quebram a barreira entre você e o mundo. Em doses mais altas, surte a percepção que você se misturou com o universo ”, lições o psiquiatra.

Ilustração de uma estatua de mulher branca com medidas coloridas de flores e folhas
Foto Pexels • Caminhadas Palmiro Domingues / CLAUDIA

Outra substância promissora é uma ibogaína, o princípio ativo de um arbusto encontrado na flora africana. A planta foi testada com sucesso para tratamento da dependência química pelo psiquiatra Dartiu Silveira, professor da Unifesp. Um ano após o tratamento, 7o% dos 75 pacientes estavam livres da dependência.

Já o MDMA, princípio ativo do ecstasy, é visto como uma das maiores promessas para o tratamento de estresse pós-traumático – vários países cogitam conhecidos-lo para tratar veteranos de guerra. “São efeitos incríveis já em fase três de estudo nos Estados Unidos, eo provável primeiro comprador é o Pentágono porque há muitos de ex-combatentes traumatizados, desajustados e em sofrimento”, afirma Sidarta.

A expectativa é que o uso do medicamento pode ser liberado a partir de 2022. Já a psilocibina é estudada em terapias paliativas com pacientes terminais. Eles relatam ter uma prazerosa sensação de dissolução do ego, que promove paz nos momentos finais da vida.

Apesar da má-fama injustamente imputada pelos anos de demonização feita por autoridades policiais e reproduzidas na imprensa, como substâncias psicodélicas não causam dependência. É a demonstração de uma revisão feita pelo cientista norte-americano David Nichols, em 2016, ainda hoje a mais completa sobre os efeitos delas. Isso não significa que usuários usuários livres de riscos.

Pessoas com psicoses, diagnosticadas com esquizofrenia ou transtorno bipolar nao devem tomá-las. Tófoli também guarda cautela quanto à panaceia atribuída às plantas alucinógenas. “Apesar do entusiasmo, há um certo hype de dizer que psicodélico é mais poderoso que os antidepressivos. Não é bem assim, não. São recursos terapêuticos como quaisquer outros. Precisamos definir com maior clareza as indicações, contra-indicações e limites ”, diz.

pandemia freou os estudos na área no último ano, e o Brasil pode perder a liderança na virada psicodélica mundial. Mas a antropóloga Beatriz Labate observa que ainda estamos em vantagem graças ao conhecimento ancestral acumulado pelos povos indígenas. “Existe aqui uma forte tradição cultural de uso substâncias, o que permite um ambiente mais holístico para sentido o significado e o impacto dessas práticas na vida das pessoas”, acredita-se.

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