Análise de fala psicodélica desfaz parentesco de LSD com esquizofrenia

MARCELO LEITE – FOLHA DE SÃO PAULO

Uma velha discussão sobre a relação de viagens psicodélicas com psicoses ganhou novas luzes com a análise automatizada do que psiconautas falam depois de tomar LSD. A concepção “psicotomimética” dizia que o efeito da substância imitava sintomas psicóticos, mais especificamente da esquizofrenia, mas não foi bem isso que se encontrou.

Esse paradigma dos anos 1950-60, que associava psicodelia com patologia, está hoje ultrapassado. Uma das razões para isso está no fato de vários estudos realizados já neste século apontarem que psicodélicos clássicos (LSD, DMT, psilocibina), apesar das alucinações e dos visuais que desencadeiam, podem ter benefícios terapêuticos para vários transtornos mentais, como depressão e dependência química.

Hoje em dia se fala mais em aumento de entropia nas redes cerebrais, uma espécie de chacoalhão psicodélico aparentemente capaz de destravar e rearranjar pensamentos rígidos e ideias fixas, como se fossem as partículas de um globo de neve sacudido. O modelo teórico do “cérebro entrópico” é obra do britânico Robin Carhart-Harris, um dos autores do estudo publicado na revista Consciousness and Cognition.

artigo reuniu pesquisadores da Argentina, Brasil e Reino Unido, sob a batuta do físico Enzo Tagliazucchi, da Universidade de Buenos Aires. Pelo Brasil entraram a psiquiatra Natália Mota e o neurocientista Sidarta Ribeiro, do Instituto do Cérebro da UFRN, e o físico Mauro Copelli, da UFPE.

Os pesquisadores sul-americanos cooperaram, neste caso, com um dos grupos mais avançados no renascimento desse campo, o Centro para Pesquisa Psicodélica do Imperial College de Londres. Lá se realizou a parte experimental do estudo, no grupo de Carhart-Harris e seu mentor, David Nutt.

O título combina bem com o inusitado da experiência e das conclusões — “A Língua Entrópica: Desorganização da Linguagem Natural sob LSD”. Duas dezenas de psiconautas experimentados tomaram injeções intravenosas contendo 75 microgramas de LSD ou de soro fisiológico (placebo), em duas visitas ao centro separadas por duas semanas.

No momento que corresponderia ao auge da viagem para quem tomou LSD, 120 a 150 minutos depois da ingestão, ficaram por 60 minutos dentro de uma máquina de ressonância magnética funcional para obter imagens da atividade cerebral. Passados 40 minutos, entraram noutra máquina, de magnetoencefalografia.

São verdadeiros heróis, pois ninguém merece viajar nesse confinamento. Logo que deixavam cada um dos aparelhos, pesquisadores os entrevistavam sobre o que estavam sentido. Não espanta que tenham gravado respostas deste teor:

“Foi engraçado, porque sem a música os… os… os sons do scanner apenas permitiam que você meio que derivasse com os… com os sons do scanner, mas, com a música e os… os sons do scanner, era quase que mais difícil.”

Mas esse foi só o ponto de partida para o estudo de Tagliazucchi & cia. O grupo se debruçou então sobre esses fragmentos de discurso e os retalhou ainda mais, para que pudessem ser tratados, analisados e quantificados de modo automático por computadores.

Conectivos foram deletados, assim como palavras com duas letras ou menos em inglês, por razões detalhadas no artigo original (tudo muito complicado para enumerar aqui). Resultaram séries de palavras como esta: “engraçado, sem, música, som, scanner, permitir, meio, derivar, sons, scanner, música, sons, scanner, quase, difícil”.

À esq., palavras mais usadas sob influência de LSD; à dir., as mais frequentes no caso de placebo (Reprodução)

Aplicaram-se dois tipos de análise formal sobre as muitas fieiras de vocábulos, semântica (o significado das palavras é relevante) e não semântica (só importam ordem, repetição e arranjo de palavras). A segunda modalidade é a que interessa aqui, porque coube ao trio de brasileiros.

Mota, Copelli e Ribeiro são pioneiros na análise por grafos. Reportagem minha na Folha sobre a aplicação dessa técnica a vários tipos de discursos os descrevia assim: “Diagramas em que cada palavra de um enunciado vai representada com um círculo, os nós, e estes são interligados por setas, ou arestas, na ordem em que se sucedem no discurso. Quando uma palavra ou expressão aparece de novo, uma outra flecha a conecta com a primeira ocorrência do termo”.

Exemplo de grafo, diagrama que representa palavras encadeadas em trecho de fala (Reprodução)

Com base nesse recurso, em trabalhos anteriores o trio mostrou que consegue separar com 80-90% de precisão falas de psicóticos e de não psicóticos. Aplicado aos relatos de psiconautas de Londres, comparados com os da condição de placebo e com uma base de enunciados de doentes mentais, despontaram algumas observações interessantes.

A primeira constatação foi que psiconautas exibem um aumento verborrágico, tipo logorreia (já presenciei ocorrências extremas disso). Muitas palavras proferidas, mas curiosamente com vocabulário comparativamente reduzido (repetições de vocábulos –ainda que cobrindo uma gama maior de temas, informação vinda da análise semântica).

“Os achados dialogam com outro estudo recente de nosso grupo, que mostrou semelhança estrutural de textos da Idade do Bronze na Mesopotâmia e no Egito com o discurso de pessoas em estado psicótico”, comenta Sidarta Ribeiro, da UFRN. “Ainda que mais estudos precisem ser feitos para aprofundar essa questão, hoje é plausível considerar que as lideranças letradas da Antiguidade mais remota tivessem o ímpeto criativo de pessoas que hoje são diagnosticadas com o transtorno bipolar em fase maníaca”.

Dois grafos de falas do mesmo participante no estudo, sob efeito de LSD, à esq., e sob placebo, à dir. (Reprodução)

Tudo somado, os autores concluem da análise formal desses relatos durante efeito psicodélico que há, sim, algum parentesco com discursos psicóticos, mas não da variedade esquizofrênica, e sim com componentes maníacos, como no transtorno bipolar, mas também com os controles normais do experimento. Aumenta a entropia da fala (desorganização), é fato, mas não a ponto de dar sustentação ao paradigma psicotomimético

“Nossas análises ressaltam que simplesmente atribuir uma propriedade ‘psicotomimética’ a psicodélicos serotonérgicos carece de especificidade e que análises computacionais da linguagem natural apropriadamente aplicadas guardam o potencial para fornecer tal especificidade”, concluem Talgiazucchi & cia.

Gráfico compara nível de desorganização de discurso em casos de esquizofrenia, transtorno bipolar e ingestão de LSD (Reprodução)

“Grafos de fala caracterizam como a própria produção espontânea de discurso pode ser perturbada sob os efeitos de LSD, ou durante episódios de doença mental. Tais dados em tempo real possivelmente fornecem um reflexo mais válido e mais interessante da ação de uma droga sobre mecanismos da linguagem do que relatos retrospectivos –embora os últimos sejam mais fáceis de coletar.”

Ponto para a neurociência brasileira.

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