Por Daniel Pompeu – Revista ComCiência
No caso da bebida amazônica, que contém o princípio ativo DMT, já existem fortes indícios de um efeito antidepressivo em pacientes que não respondem a tratamentos convencionais.
Os 29 voluntários entre 18 e 60 anos entram, cada um em um dia e hora marcada, em uma sala do Hospital Universitário Onofre Lopes em Natal, no Rio Grande do Norte, após aceitarem participar de um estudo pioneiro. Todos foram diagnosticados com transtorno depressivo, com baixa resposta aos tratamentos convencionais. Escolhidos aleatoriamente, 14 tomarão uma dose de ayahuasca – bebida extraída de um arbusto e cipó nativos da Amazônia e utilizada em rituais religiosos como os do Santo Daime e da União do Vegetal (UDV) – e 15 um placebo. Após ingerirem o composto vegetal (ou o placebo) os participantes são instruídos a manterem os olhos fechados e focarem em seu corpo, sensações e emoções pelas próximas quatro horas. Acompanhados sempre por dois pesquisadores durante a sessão, os voluntários podem ouvir a uma playlist pré-definida que inclui clássicos da MPB, como Maria Bethânia, Tim Maia, Roberto Carlos e Almir Sater.
O estudo descrito foi realizado entre 2014 e 2017 por pesquisadores da UFRN, USP e Unicamp e publicado na revista Phsycological Medicine, da Universidade de Cambridge. A ayahuasca contém o princípio ativo DMT (dimetiltriptamina), um poderoso psicodélico que pode provocar alucinações visuais e sonoras. Além de estar presente em algumas plantas, há indícios de que a substância também seja produzida pelo corpo, apesar do mistério sobre sua função fisiológica. O objetivo dos cientistas era entender se a ayahuasca provocaria respostas positivas em quadros depressivos, como já havia sido indicado por estudos prévios. O resultado foi categórico: os pacientes tiveram uma redução significativa nos sintomas ao tomarem a ayahuasca quando comparados àqueles que receberam um placebo até sete dias após a dose administrada.
O estudo originou da tese de doutorado em neurologia de Fernanda Palhano-Fontes, que atualmente é técnica em neuroengenharia no Instituto do Cérebro (UFRN). Orientada pelo cientista Dráulio Araújo, ela já havia participado de outras pesquisas com a substância, mas esse teste foi o primeiro em que administrou placebo a metade dos participantes, em um esquema duplo-cego, no qual nem mesmo os cientistas que analisam os dados sabem se o paciente tomou a substância lisérgica ou o placebo. Nenhum dos participantes havia tomado ayahuasca antes do estudo e todos estavam, em média, há 15 dias sem tomar medicação para depressão.
Com o objetivo de avaliar os efeitos da droga, os cientistas fizeram uma série de exames e entrevistas um dia antes do experimento, dois dias após e sete dias depois. Descobriu-se que o efeito antidepressivo já começa um dia após a administração da ayahuasca e é ainda maior após uma semana. “Não só avaliamos o efeito antidepressivo em si, mas também fizemos vários outros exames tentando ver de onde poderia vir esse efeito”, ressaltou Palhano-Fontes. De acordo com ela, os cientistas notaram um efeito de reequilíbrio dos níveis de cortisol para aqueles que tomaram a ayahuasca. O desequilíbrio do hormônio, associado ao estresse, é comum em pacientes com depressão severa. A resposta sinaliza grande potencial antidepressivo da substância.
Para Luis Fernando Tófoli, professor do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp e um dos coautores do trabalho, apesar dos resultados promissores, ainda não se sabe exatamente o que causa a melhora dos pacientes. Entre as possibilidades e hipóteses estão a experiência holística ou emocional associada aos psicodélicos, o aspecto ritualístico ou terapêutico da situação ou até mesmo o efeito fisiológico da substância, como a redução da atividade cerebral em áreas associadas à depressão ou o estímulo na formação de sinapses (conexões entre neurônios). “Ainda não temos uma resposta completa para isso”, ressalta.
Com a nova onda de pesquisas sobre o assunto, a ciência fica mais perto de entender as razões de tais efeitos terapêuticos. No caso de outra substância psicodélica, a metilenodioximetanfetamina (MDMA), estão em fase final de testes nos Estados Unidos e devem ser regularizados remédios controlados para tratamento de estresse pós-traumático nos próximos anos. No Brasil, um estudo liderado pelos cientistas Sidarta Ribeiro (UFRN) e Stevens Rehen (UFRJ) indica que o LSD (dietilamida do ácido lisérgico) tem capacidade de estimular e melhorar a cognição cerebral. A pesquisa, que utilizou ratos e “mini cérebros” para testar os efeitos do ácido, ainda não foi revisada e publicada em revista especializada, mas um artigo prévio descrevendo os resultados está disponível no site biorxiv.org.
Segundo Tófoli, mesmo que os psicodélicos cheguem futuramente ao mercado como novas possibilidades de tratamento para transtornos mentais, sua aplicação será feita de maneira controlada devido à experiência intensa associada a essas substâncias. “No momento em que a pessoa toma, ela pode precisar de cuidados, eventualmente pode ter quadro de pânico ou ansiedade. É mais provável que essas substâncias passem a funcionar em um misto de psicoterapia com a substância, e aplicado de forma supervisionada”. E destaca: “não são substâncias milagrosas, elas têm seus limites e suas contraindicações, é preciso deixar isso claro”.
Cannabis e a ansiedade
A cannabis é outra substância que tem figurado cada vez mais em estudos na tentativa de identificar seus potenciais para tratamentos de diversas doenças. Já se sabe, por exemplo, da alta efetividade do canabidiol (CBD), um dos compostos da cannabis, para tratamento de sintomas da esclerose múltipla, epilepsia, dor crônica e efeitos adversos em pacientes que realizam quimioterapia. No início deste ano, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária aprovou uma resolução facilitando a importação de medicação composta principalmente pelo CBD no tratamento de tais quadros, mediante recomendação médica.
Os Estados Unidos estão mais à frente no processo de legalização e regulamentação para uso medicinal e recreativo da substância. Em diversos estados americanos a maconha já pode ser receitada como medicação para mitigação dos efeitos do chamado transtorno de ansiedade generalizada. A ciência, entretanto, ainda não chegou a conclusões sólidas sobre os efeitos ansiolíticos da planta. Enquanto o CBD tem mostrado efeitos positivos no tratamento da ansiedade, o tetrahidrocanabinol (THC) pode induzir à ansiedade e está associado a efeitos adversos como a dependência e sintomas psicóticos, principalmente quando há uso prolongado.
Devido à diversidade dos princípios ativos presentes na planta, a ciência ainda tem uma longa trajetória para atestar ou não o efeito positivo de tais compostos em transtornos como a ansiedade e a depressão. “Embora existam estudos observacionais de pessoas que usam maconha medicinal sugerindo melhoras em quadros de ansiedade e depressão, não existem estudos clínicos com maconha que confirmem esses resultados”, explica Rafael Guimarães dos Santos, pesquisador do Departamento de Neurociências da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto.
De acordo com Santos, apesar dos relatos de usuários de maconha medicinal sobre a melhora nos sintomas de depressão e ansiedade, a falta de padronização da planta e dos produtos derivados dificulta as conclusões em larga escala. “No caso do CBD, já existem estudos clínicos, alguns realizados por nosso grupo, sugerindo potencial uso para controlar a ansiedade. Estamos realizando no momento o primeiro estudo do CBD focado em depressão e ansiedade generalizada. Mas, mesmo com resultados promissores, também não há evidências científicas suficientes para justificar o uso do CBD”, conclui o pesquisador.
Daniel Pompeu é jornalista e aluno do curso de especialização em jornalismo científico e cultural (Labjor/Unicamp)