“Sal e pimenta” em vez de “cata-ventos”

Todos os roedores investigados até agora possuem neurônios seletivos para contornos orientados no córtex visual primário, mas nenhuma evidência de mapas periódicos com estruturas semelhantes a “cata-ventos”, em contraste com carnívoros e primatas. “Cata-ventos” são assinaturas bem conhecidas de uma organização cortical desses neurônios seletivos. Eles se desenvolveram durante a evolução várias vezes e independentemente em diferentes continentes. Apesar de alguns roedores enxergarem muito bem, todas as espécies investigadas até agora mostram um arranjo dos seus neurônios que não é periódico – e sem os cata-ventos – denominado “sal e pimenta”, por misturar neurônios de diferentes preferências em área pequena.

Esse fato estimulou muitos grupos de físicos teóricos a debaterem sobre os fatores que determinam e restringem a formação do mapa de “cata-ventos” durante a evolução e o desenvolvimento pós-natal. Esses estudos apontaram para o tamanho do córtex visual como uma restrição crítica, já que os roedores investigados até agora têm, em sua maioria, um cérebro pequeno, a exemplo de ratos ou camundongos. Estudo desenvolvido no Instituto do Cérebro (ICe) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), no entanto, examinou a organização funcional dos neurônios seletivos para orientação dentro do córtex visual da cutia (Dasyprocta leporina), um grande roedor sul-americano e uma espécie ainda pouco investigada.

Imagens mostram diferença entre mapa cortical tipo “cata-ventos” (à esquerda) e mapa cortical tipo “Sal e pimenta”

A cutia chamou atenção nessa discussão por ser um roedor diurno e altamente visual e por possuir o maior córtex visual primário (320-340 mm2) investigado nessa ordem até o momento (maior seria só a capivara). Vale ressaltar que a área visual primária desse roedor é 10 vezes maior do que a dos esquilos cinzentos previamente investigados e, assim, comparável à dos gatos. Isso coloca as cutias em um quadro mais amplo dentro da discussão dos fatores que impulsionam a formação do mapa cortical visual, uma vez que dois trabalhos teóricos a propõem como o “elo perdido” sobre a evolução e o desenvolvimento de mapas corticais, prevendo um layout com “cata-ventos” devido ao seu tamanho de córtex visual.

Para investigar esse layout, foram usadas imagens de sinal intrínseco e técnicos eletrofisiológicos. Nos estudos, os pesquisadores da UFRN conseguiram demonstrar e quantificar, pela primeira vez, que a cutia tem neurônios altamente seletivos a contornos orientados e à direção de movimento. Inesperadamente – e contrários à proposta teórica de que mapas periódicas se desenvolvem para economizar conexões corticais quando o cérebro alcança um certo tamanho –, os resultados de imageamento mostram uma organização não periódica e uma falta de estruturas semelhantes a cata-ventos nesta espécie de roedor.

Além disso, os pesquisadores descobriram uma microestrutura dentro da organização “sal e pimenta” que foi observada antes em camundongos, conforme expresso por um agrupamento espacial de células iso-orientados a muito curta distância, tipo “sal grosso”. Na base do estudo da UFRN, pode-se concluir que a estrutura funcional do córtex visual em roedores depende de restrições filogenéticas, em vez de regras de organização universais que tinham previsto “cata-ventos” na cutia por causa do tamanho do seu cérebro.

Esses resultados são relevantes não apenas para a comunidade científica no campo da neurociência visual experimental e teórica, mas também para pesquisadores que investigam a estrutura e a evolução do cérebro. Já que o córtex visual não pode ser visto isolado, mas sim como um exemplo de estrutura cortical em geral, os resultados abrem também perguntas sobre possíveis diferenças sistemáticas entre cérebros de roedores e primatas que devem ser considerados quando se pensa na interpretação de observações feitos em modelos roedores para doenças neurológicas ou psiquiátricas.

A cutia possui o maior córtex visual primário investigado nessa ordem até o momento – Foto: Moacir F. de Oliveira – UFERSA

O trabalho foi executado integralmente no ICe/UFRN, em Natal, no Laboratório de Neurobiologia da Visão, coordenado pela neurocientista Kerstin Schmidt, com suporte da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (Ufersa), campus Mossoró. O equipamento foi doado pelo Instituto Max Planck de Pesquisa do Cérebro, de Frankfurt, Alemanha. Os autores do estudo são Dardo N. Ferreiro, Sergio A. Conde-Ocazionez, João H. N. Patriota, Luá C.dos Santos, Moacir F. De Oliveira, Fred Wolf e a própria Kerstin.

Leia estudo na íntegra AQUI.

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