Cientistas brasileiros testam MDMA para tratar transtorno de estresse pós-traumático

Pesquisadores avaliarão o potencial do princípio ativo do ecstasy com ajuda de voluntários

Por RAFAEL CISCATI/FOLHA DE SÃO PAULO

SÃO PAULO – O comprimido é usado em festas, causa euforia e é ilegal. Por décadas, o MDMA — o princípio ativo do ecstasy — foi usado às escondidas, até ser redescoberto pela ciência. Em março, uma equipe de pesquisadores liderada pelo neurocientista Eduardo Schenberg vai avaliar, com a ajuda de voluntários brasileiros, o potencial da metilenodioximetanfetamina (seu nome completo) para tratar o transtorno de estresse pós-traumático. Até hoje a ciência ainda não conseguiu desenvolver bons tratamentos para esse distúrbio psiquiátrico.

A equipe de Schenberg vai selecionar quatro pacientes que sofrem com o transtorno há mais de seis meses e não responderam às abordagens convencionais. Dez interessados já entraram em contato. Com o estudo, o primeiro a avaliar a segurança e o potencial terapêutico do MDMA no Brasil, o país passa a fazer parte de um esforço de pesquisa internacional. Nos EUA, estudos assim são realizados desde os anos 1990, com resultados positivos. O composto já despertou a atenção do governo americano — em agosto, a FDA, órgão responsável por regulamentar remédios e tratamentos, classificou as terapias com MDMA como “disruptivas”. O status indica que os EUA pretendem acelerar a regulamentação do tratamento, para torná-lo disponível ao público nos próximos anos.

Os pacientes brasileiros farão 15 sessões semanais de psicoterapia, sendo três sob efeito da droga, para discutir seus traumas com uma dupla de terapeutas. Tudo em ambiente controlado — um consultório com sofás e música instrumental — e na presença de médicos prontos a atender emergências. O financiamento ficou por conta da ONG criada por Schenberg, a Plantando Consciência, que levantou R$ 53,3 mil através de uma campanha de crowdfunding. A substância, fabricada nos EUA, será fornecida pela Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (MAPS, na sigla em inglês) — organização sem fins lucrativos pioneira em estudos sobre o tema.

O distúrbio acomete vítimas de violência grave, como estupro e sequestro, ou que vivenciaram guerras e desastres naturais. Tratá-lo é um desafio: a abordagem tradicional envolve sessões de terapia, conduzidas por psicólogos; e antidepressivos, receitados por psiquiatras. Cabe ao paciente frequentar os consultórios desses dois profissionais. Os benefícios podem levar anos para aparecer. Muitas vezes, nunca surgem:

— A terapia tradicional falha porque muitas vezes o trauma foi tão violento que o paciente sequer consegue falar a respeito — afirma Schenberg.

Os estudos da MAPS demonstraram que, com o auxílio do MDMA, os pacientes se sentem mais livres para discutir seus traumas. E os benefícios aumentam: um trabalho publicado em 2010 mostrou que 83% dos pacientes relataram melhoras, contra 25% daqueles que receberam placebo. Os benefícios são duradouros — em outro estudo, publicado em 2012, os cientistas mostraram que pacientes que fizeram a terapia no início dos anos 2000 não manifestavam sintomas da doença, mesmo mais de dez anos depois.

O interesse de Schenberg pelo tema é antigo. O cientista, formado pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), fez parte da equipe do Imperial College de Londres que monitorou as mudanças nas funções cerebrais durante o uso de LSD, outra droga psicodélica — nome dado às substâncias que alteram a percepção da realidade. Seus achados, publicados em 2016, chegaram a ser chamados de “o Bóson de Higgs” da psiquiatria, em referência à partícula fundamental detectada em 2012.

Seu novo estudo não tem vínculos oficiais com nenhuma universidade brasileira, mas será acompanhado por três conselheiros que são professores universitários: o psiquiatra Dartiu Xavier, da Unifesp (que ajudou Schenberg a selecionar os terapeutas que participarão da pesquisa); o professor Luís Fernando Tófoli, da Unicamp; e o neurocientista Sidarta Ribeiro, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Com apenas quatro voluntários, a pesquisa brasileira é o que os cientistas chamam de ensaio clínico fase 2. Em junho deste ano, a MAPS dará início a um ensaio clínico fase 3 — a última etapa exigida pela FDA para disponibilizar o novo tratamento ao público. Devem participar 300 voluntários, divididos em centros de pesquisa nos EUA, Canadá e Israel. O Brasil também pretende entrar nesse grupo, logo que concluir o estudo atual. Nos cálculos da MAPS, o tratamento poderá estar disponível aos americanos até 2021. Para o mesmo acontecer no Brasil, é preciso registro na Anvisa.

Vítimas da violência urbana

Estimativas indicam que 7% dos americanos sofrem com o transtorno, sobretudo veteranos de guerra. Há no país o temor de que o entusiasmo estimule a procura por ecstasy. O MDMA é considerado uma droga de baixo potencial viciante. Frequentemente, o ecstasy vendido ilegalmente não contém MDMA.

— Somente uma série de contaminantes que podem causar prejuízos à saúde — diz Schenberg. — Não estamos defendendo o uso recreativo da droga.

No Brasil, o público preferencial do novo tratamento são vítimas de violência urbana. Dentre aqueles que entraram em contato com o grupo de Schenberg, há policiais, bombeiros e vítimas de abuso sexual.

Substância foi sintetizada em 1912

Os resultados promissores do MDMA são ainda um mistério para os cientistas. A droga atua sobre um receptor químico do cérebro chamado serotonina, associado a oscilações de humor. Suspeita-se que, por isso, ajude desinibir o paciente e a criar laços de confiança entre ele e o terapeuta.

A história da substância é sinuosa. O MDMA foi sintetizado em 1912, por uma indústria alemã. Ficou sem uso até os anos 1970, quando o químico americano Alexander Shulgin percebeu que induzia estados de euforia e poderia ter valor terapêutico. Àquela altura, a patente do MDMA já havia expirado, e Shulgin apresentou a droga a um grupo de terapeutas, que passaram a estudar seu potencial no tratamento de transtorno de estresse pós-traumático. Pouco depois, ela seria descoberta por público mais amplo, vendida em festas e proibida pelo governo americano.

Seu retorno acontece em um momento em que a psiquiatria vive uma crise de criatividade. Há décadas, esse ramo da ciência não desenvolve novos tratamentos ou novas drogas eficientes. Nesse contexto, os trabalhos com drogas psicodélicas ganham espaço.