Os estados dissociados relacionados ao sono e sua importância para o estudo da consciência

com Sérgio Arthuro (médico e neurocientista, pós-doc no ICe)

“Sonhar acordado” em neurociência é mais do que uma força de expressão. No artigo “Acordado ou dormindo? Talvez ambos… Uma revisão sobre os estados dissociativos relacionados ao sono” 1, pesquisadores do Instituto do Cérebro da UFRN, em colaboração com a Universidade de Minnesota (EUA), revisam a literatura publicada sobre o tema desde a década de 1940 até a atualidade. O trabalho analisou 196 referências e é assinado pelos neurocientistas Maria Eduarda Sodré, Isabel Wieβner, Muna Irfan, Carlos H. Schenck e Sérgio Mota-Rolim.

Os autores começam discutindo que, embora exista a impressão de que, ao dormirmos, nosso cérebro inteiro está no padrão de atividade do sono, estudos recentes demonstram que existe o chamado “sono local”, termo usado para definir as características fisiológicas específicas encontradas em diferentes regiões do cérebro durante o sono. Segundo Sérgio, nos seres humanos, os estados básicos da consciência são classificados em: 

  • vigília: quando estamos acordados ou despertos, reagindo aos estímulos ambientais
  • início do sono (N1): é quando começamos a dormir (transição entre vigília e sono)
  • sono leve (N2): já estamos dormindo, mas qualquer estímulo forte pode nos acordar 
  • sono profundo (N3): é quando o cérebro está “descansando”, numa atividade lenta
  • sono com movimento rápido dos olhos (REM, do inglês rapid eye movement): é quando mexemos os olhos, relaxamos os músculos, e temos os sonhos mais típicos

Ao longo da noite de sono de uma pessoa adulta saudável, esses estados se alternam de maneira estável. No entanto, as transições de um estado para outro, embora graduais, são muitas vezes incompletas, podendo ocorrer mais de um estado ao mesmo tempo. Ou seja, o sono e a vigília estão acontecendo em regiões diferentes do cérebro simultaneamente. Os autores do estudo, de forma pioneira, classificaram esses estados dissociados da consciência em três categorias, dando três exemplos para cada, como descrito abaixo e detalhado a seguir.

  • Estados fisiológicos: ocorrem de maneira regular, em pessoas saudáveis, como o sonho acordado, o sonho lúcido e o falso despertar
  • Estados patológicos: ao contrário do fisiológicos, são associados a doenças, como a paralisia do sono, o sonambulismo e o transtorno comportamental do sono REM
  • Estados alterados: quando induzido por agentes externos, sejam psicológicos (como na hipnose) ou farmacológicos (como na anestesia ou no uso dos psicodélicos).

Estados dissociativos fisiológicos 

Sonhar acordado: quando a pessoa está acordada, mas com distanciamento (parcial ou total) da realidade, direcionando a sua consciência para a própria imaginação (daydreaming, em inglês). Ocupa mais da metade do nosso tempo acordado, mas ainda não há conhecimento sistemático suficiente sobre sua frequência, duração etc. O sonhar acordado tem um papel construtivo positivo – como se preparar para um evento, fazer planos, ou simplesmente dar vazão à imaginação e fantasia – mas também pode gerar preocupações excessivas e até mesmo dificuldade de controlar a atenção. No limite, sonhar acordado pode se tornar um componente de quadros depressivos e ansiosos, ou então alimentar pensamentos intrusivos repetitivos (também conhecidos como ruminação). As principais regiões relacionadas ao sonhar acordado são mostradas na figura abaixo.

Sonho lúcido: quando o sujeito é capaz de saber que está sonhando durante o sonho, podendo até controlar o conteúdo do próprio sonho. Acontece principalmente – mas não exclusivamente – durante o sono REM. Sérgio estudou esse tema no doutorado orientado pelo professor Sidarta Ribeiro, e fez uma pesquisa em uma amostra na população brasileira de cerca de 3500 pessoas 2: “Encontramos que a maioria das pessoas já teve pelo menos um sonho lúcido na vida, mas são raras aquelas que têm sonho lúcido de forma frequente – e a neurociência ainda não sabe o porquê”. 

Falso despertar: é um sonho em que a pessoa acredita que está acordada, já que o conteúdo onírico é semelhante ao de sua vida cotidiana, principalmente em ações como levantar da cama, tomar café, ir ao banheiro, escovar os dentes etc. Também ocorre principalmente durante o sono REM. Só quando o indivíduo acorda de verdade é que percebe que estava sonhando. Muitas pessoas associam o falso despertar a “um sonho dentro de um sonho”, como no filme “A origem”. 

Estados dissociativos patológicos 

Paralisia do sono: acontece principalmente na transição do sono REM para o despertar. É caracterizada pela impossibilidade de se movimentar, sensação de aperto no peito, alucinações visuais, e até medo da morte, como muito bem mostrado abaixo no quadro de Henry Fuseli (1781). Envolve componentes emocionais negativos intensos e, para a maioria das pessoas, ocorrem em poucos episódios ao longo da vida. Sérgio também estudou esse tema, e ressalta que: “O interessante da paralisia do sono é que diferentes culturas no mundo a interpretam como um fenômeno sobrenatural, em que se sente a presença ou se vê espíritos do mal, bruxas, monstros etc. Nos EUA, muitos relatos de pessoas que diziam que eram abduzidas por E.T.s, na verdade, são casos de paralisia do sono” 3.

Sonambulismo: é um estado dissociativo clássico, em que, de forma bem resumida, “o corpo acorda enquanto o cérebro continua dormindo”. Seria o contrário da paralisia do sono, em que o cérebro acorda, mas o corpo permanece dormindo. O sonambulismo ocorre em fases mais leves do sono e se caracteriza por a pessoa estar dormindo enquanto realiza atividades complexas, como andar ou até dirigir. É mais comum em crianças, as quais normalmente não se recordam do acontecido, e tende a diminuir com a idade. Pode ocorrer como efeito colateral de algumas medicações, a exemplo do Zolpidem. Existe um mito que diz que não se deve acordar um sonâmbulo, se não a pessoa pode morrer. O que se aconselha, na verdade, é que, ao ver um(a) sonâmbulo(a), deve-se levá-lo(a) gentilmente de volta para cama, evitando movimentos bruscos. Também é importante proteger a pessoa de se ferir, o que é bastante raro.

Transtorno comportamental do sono REM: estado de movimentação anormal durante o sono REM em que a pessoa mexe os olhos (mesmo com as pálpebras fechadas) e/ou outras partes do corpo, de acordo com o que está sonhando. Normalmente envolve sonhos ou pesadelos com confronto, agressão e violência, em que a pessoa está tentando se defender. É mais frequente em homens de meia-idade ou idosos. Recentemente, observou-se que mais de 80% desses pacientes eventualmente são acometidos por transtornos neurodegenerativos como doença de Parkinson e demência de Lewy, com um intervalo de cerca de uma década entre o começo do transtorno comportamental do sono REM e o surgimento dessas doenças degenerativas do cérebro.

Estados dissociativos alterados

Hipnose: a palavra tem origem no grego Hypnos, que significa “dormir”, e foi popularizada a partir da metade do século 19 pelo médico escocês James Braid. É um estado semelhante ao início do sono (N1), em que a pessoa fica em um estado altamente sugestionável pela utilização de técnicas de indução e relaxamento. Atualmente é reconhecida como um tratamento complementar em psicoterapia, medicina, esportes e até mesmo no meio forense. Trabalhos recentes têm mostrado que a hipnose é uma das técnicas cognitivo-comportamentais mais eficientes para o controle emocional da dor. 

Anestesia: “você vai adormecer agora”. Quem já passou por algum procedimento que necessita de anestesia, deve se lembrar desta frase – basicamente a última coisa ouvida antes de receber a medicação. A anestesia é um recente e importante objeto de estudo em neurociência, pois leva o cérebro para um estado similar ao sono por meio da administração de certas substâncias. A pergunta que os pesquisadores buscam responder sobre esse estado é o que acontece com a atividade cerebral quando a consciência sobre o mundo ao redor desaparece. 


Psicodélicos: Sérgio fez o pós-doutorado nesse assunto orientado pelo professor Dráulio Araujo. Esses autores, junto com uma grande equipe, descobriram que a ayahuasca apresenta efeitos antidepressivos significativos3. Além da ayahuasca, o ácido lisérgico e a psilocibina, por exemplo, são substâncias cujo potencial terapêutico voltou a ser estudado, após um hiato dessas pesquisas em fins da década de 1960 (por motivações políticas). Tanto as investigações mais antigas quanto as mais modernas encontram efeitos dos psicodélicos no cérebro humano como redução do controle cognitivo, emocionalidade aumentada, percepções alteradas dos sentidos, corpo, tempo e espaço, etc.. Essas características conceituam os psicodelicos como sonhos experimentais.

Referências: 

1 – Sodré, M.E.; Wießner, I.; Irfan, M.; Schenck, C.H.; Mota-Rolim, S.A. Awake or Sleeping? Maybe Both… A Review of Sleep-Related Dissociative States (2023). Journal of Clinical Medicine 2023,12, 3876. https://doi.org/10.3390/jcm12123876
Link: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/37373570/

2 – Mota-Rolim, S.A., Targino, Z.H., Souza, B.C., Blanco, W., Araujo, J.F., Ribeiro, S. (2013). Dream characteristics in a Brazilian sample: an online survey focusing on lucid dreaming. Frontiers in Human. Neuroscience 7, 836. https://doi.org/10.3389/fnhum.2013.00836. ?
Link: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/24368900/

3 –  de Sá JFR and Mota-Rolim AS (2016) Sleep Paralysis in Brazilian Folklore and Other Cultures: A Brief Review. Frontiers in Psychology. 7:1294. doi: 10.3389/fpsyg.2016.01294.
Link: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5013036/

4 – Palhano-Fontes F et al (2018). Rapid antidepressant effects of the psychedelic ayahuasca in treatment-resistant depression: a randomized placebo-controlled trial. Psychological Medicine 1–9. https:// doi.org/10.1017/S0033291718001356. 
Link: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/29903051/