O Laboratório de Sono, Sonhos e Memória, do Instituto do Cérebro (ICe-UFRN), chefiado pelo neurocientista Sidarta Ribeiro, vem colecionando avanços no entendimento do que acontece dentro da nossa cabeça quando a encostamos no travesseiro. Mais um passo foi dado em direção a esse conhecimento com a publicação, na revista Scientific Reports, do grupo britânico Nature, do artigo “Hippocampus-retrosplenial cortex interaction is increased during phasic REM and contributes to memory consolidation” (Interação Hipocampo-Córtex Retrosplenial aumenta durante REM fásico e contribui para consolidação da memória), assinado pelo pós-doutorando Daniel Gomes de Almeida Filho – orientando de Sidarta e de Claudio Queiroz, também do ICe-UFRN, e que integram o trabalho – em parceria com mais quatro cientistas, entre eles o professor Pierre-Hervé Luppi (Universidade de Lyon, na França).
E foi com o professor Luppi, no Centro de Pesquisa em Neurociência da Universidade de Lyon, que esse artigo começou. Em 2015, ele publicou um trabalho na revista Science Advances que identificava regiões do cérebro mais fortemente ativadas durante o sono REM (conhecido por ser um estado de sono profundo, momento em que acontecem os sonhos). Dois anos depois, graças ao programa de cooperação internacional entre a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e o Comitê Francês de Avaliação da Cooperação Universitária com o Brasil (COFECUB), pesquisadores do Instituto do Cérebro puderam demonstrar, por meio de registros eletrofisiológicos, essa ativação. A técnica de eletrofisiologia permite compreender como impulsos elétricos produzidos por neurônios, os chamados potenciais de ação, são organizados no tempo e no espaço. Esses resultados foram publicados em 2017, na revista The Journal of Neuroscience.
A partir de então, os pesquisadores se perguntaram se essa comunicação neuronal durante o sono apresentava alguma relevância para processos cognitivos, como a memória. Para isso, eles registraram a atividade eletrofisiológica de ratos antes e depois dos animais serem expostos a um paradigma comportamental capaz de produzir uma memória emocional (o medo) associada a um contexto. Para analisar esses registros, Daniel, primeiro autor do trabalho recém publicado, utilizou uma técnica estatística conhecida por Causalidade de Granger. Essa estratégia analítica permite inferir relações de causalidade entre séries temporais, ou seja, se um determinado fenômeno contribui com o futuro de outro.
Assim, Daniel e seus orientadores confirmaram achados anteriores, de que a atividade teta no hipocampo durante o sono REM tende a influenciar a atividade teta no córtex retrosplenial, uma estrutura cortical integrante do chamado sistema límbico, um sistema envolvido com memória e emoções em mamíferos. Em seguida, Daniel demonstrou que essa comunicação entre o hipocampo e o córtex retrosplenial não era constante durante o sono REM, mas que podia mudar de direção e que ela ocorria mais intensamente durante momentos de aceleração do ritmo teta.
Conhecida há mais de 15 anos, essas acelerações são chamadas de REM fásico e, até o momento, nenhum estudo havia proposto uma função para essa aceleração. O trabalho publicado por pesquisadores do Instituto do Cérebro, que contou com a colaboração de pesquisadoras da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Petrolina, PE) e da Universidade Estadual da Paraíba (Campina Grande, PB), sugere que essas acelerações permitem a consolidação do traço de memória emocional experimentada durante a vigília.
No sono REM fásico depois do aprendizado, os animais que apresentaram aumento da influência do córtex retrosplenial aprenderam melhor. Os que apresentaram crescimento da influência do hipocampo, tiveram um aprendizado ruim. Já para os animais que foram colocados no contexto, mas não foram treinados, não houve mudança na relação de influência das oscilações teta entre as duas regiões. “Esse trabalho traz vários avanços para a área, mas o principal eu diria que é mais uma evidência que reforça a ideia de que há consolidação de memória durante o sono”, resumiu Daniel, que hoje trabalha como pesquisador pós-doutor no laboratório do professor Alcino Silva, na Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA).
“O trabalho reporta uma correlação entre a formação de uma memória emocional e oscilações cerebrais durante o sono REM em ratos. Especificamente, esse é o primeiro trabalho a demonstrar a participação de eventos denominados “REM fásicos” (breves acelerações do ritmo teta hipocampal durante o sono REM) na formação de novas memórias”, resumiu o professor Claudio Queiroz.