Sonho no País do Sol

Sidarta Ribeiro

Por natureza e destino minha relação com os sonhos começou cedo. Durante a infância tive pesadelos detestáveis e sonhos épicos memoráveis, que germinaram em mim a suspeita de que o mundo interior é tão vasto quanto o exterior. No início experimentava apenas o espanto… Só muito depois entendi que a vivência onírica era construída pela ativação intensa de memórias durante o sono REM (“rapid eye movement sleep”), que domina a segunda metade da noite.

Ao longo da adolescência e do início da vida adulta, numa exploração realizada com alguns dos melhores amigos desde sempre, aprendi a realizar intensos sonhos lúcidos – aqueles nos quais nos damos conta de que estamos num sonho e podemos controlar seu enredo. Guiado por mestras e mestres geniais, entendi que sonhar é poder.

Não por coincidência, nosso país se agitava no início dos anos 1990 com o sonho renascido do convívio democrático. Sonhei de olhos abertos com nossas melhores chances, mas a realidade não foi muito generosa com nada disso. Pairava no ar a sensação de que nunca superaríamos nosso terrível abismo social, nem deixaríamos de ser vira-latas entre os povos. No zumbido ensurdecedor do nosso subdesenvolvimento, castravam-se as melhores esperanças do País do Sol.

Em meados daquela década rumei para a Universidade Rockefeller em Nova York a fim de cursar o doutorado. Novamente intervieram acaso e necessidade, pois minha chegada em pleno inverno deflagrou uma sonolência invencível que durou até o início da primavera. Não conseguia assistir aulas sem dormir nem compreendia o que colegas e professores discutiam. Foram meses de apagão mental e rendição ao sonho, que a princípio parecia uma auto-sabotagem cruel mas depois se revelou poderoso instrumento de adaptação psicobiológica.

Ao emergir desses longo torpor, achando fácil tudo que nos meses anteriores havia sido impossível, decidi pesquisar os mecanismos neurais responsáveis pelo papel do sono no aprendizado. Comecei a ler a obra de Freud e percebi com nitidez que a relação entre neurociência e psicanálise é íntima. Cinco anos depois, havia descrito pela primeira vez que as experiências novas da vigília ativam, no sono REM subsequente, a expressão de genes relacionados com a consolidação de memórias. Nos termos de Freud, revelava-se um “resto diurno” molecular. Essa descoberta foi o início de uma carreira orientada para a compreensão da função cognitiva do sono e dos sonhos.

Em 2001, já realizando estudos de pós-doutorado na Universidade Duke, comecei a escrever um livro motivado pela sensação de já ser possível tecer uma narrativa coerente capaz de explicar, pelo fio condutor do sono e do sonho, de que forma saímos das cavernas e chegamos ao mundo da internet.  Publicado há poucos meses, “O Oráculo da Noite” (Cia das Letras) propõe que a força propulsora desse acúmulo cultural tão abrupto foi nossa capacidade de sonhar, lembrar e narrar. O uso das memórias do passado para construir estratégias comportamentais futuras constituiu a base de um poderoso – ainda que probabilístico – oráculo.

No doutorado e no pós-doutorado, trabalhei com afinco na construção de um outro tipo de sonho, a meio caminho entre o sonho pessoal e o sonho nacional: a criação no Nordeste brasileiro de um instituto de pesquisa de ponta sobre o cérebro. Em parceria com os neurocientistas Claudio Mello, Sergio Neuenschwander e Miguel Nicolelis, entre outros, comecei a planejar um movimento de repatriação de cientistas brasileiros e atração de cientistas estrangeiros. Esse movimento culminou em 2005 na fundação do Instituto Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lily Safra (IINN-ELS), que fundei e dirigi cientificamente em seus primeiros anos de existência.

O Brasil despertava para sua imensas potencialidades e a instalação desse centro atraiu atenção em todo o planeta. Firmou-se uma parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e os chefes de laboratório do IINN-ELS passaram a integrar o corpo docente da UFRN através de concursos públicos criados pelo então Ministro da Educação Fernando Haddad. Era palpável a percepção de que o País do Sol finalmente havia entrado nos trilhos do futuro. Chegara a vez de transformar a região Nordeste na Califórnia brasileira!

Natal se transformou nesse período num irresistível polo de atração de neurocientistas, invertendo a lógica de evasão de cérebros nessa área específica do conhecimento. Foi nessa época que consolidei com minha equipe uma das descobertas mais interessantes dessa pesquisa até agora, ao obter evidências inéditas de que o sono REM desempenha um papel chave na realocação de memórias dentro do cérebro, entre as regiões conhecidas como hipocampo e córtex cerebral.

Sabemos desde os anos 1950 que o hipocampo funciona como porta de entrada para as memórias do tipo declarativo (fatos, eventos, lugares, pessoas), mas também sabemos que com o transcorrer do tempo estas memórias são enfraquecidas e transferidas para o córtex cerebral, onde adquirem estabilidade e vida longa. Os mecanismos responsáveis por essa transferência permaneceram desconhecidos até que os resultados obtidos por meu grupo de pesquisa indicaram que a expressão gênica ativada pelo sono REM realiza o mesmo percurso das memórias: primeiro ocorre no hipocampo, depois entre hipocampo e córtex e, finalmente, apenas no córtex. O sono REM despontou como um estado fisiológico crucial para a migração e amadurecimento das memórias.

Mas nem tudo foram flores, claro. Com o tempo as tensões dentro do IINN-ELS se acumularam e afinal, noventa professores, técnicos e alunos deixaram esse centro privado para fundar na UFRN o Instituto do Cérebro (ICe), em 13 de maio de 2011. Tive a honra de dirigir o ICe até 2018, quando assumiu a nova diretora, Kerstin Schmidt, alemã radicada no Brasil, especialista em córtex visual. Apesar das dificuldades inerentes ao recomeço, conseguimos construir um ciclo virtuoso que elevou o impacto de nossa produção científica. Os pesquisadores do ICe publicaram centenas de artigos científicos originais desde sua fundação, chegando às páginas de algumas das revistas científicas de maior prestígio no mundo. Também desempenhamos um papel decisivo na formação de pessoal altamente qualificado, fomentando novas e brilhantes gerações de neurocientistas. Ações de extensão direcionadas ao público mais amplo também vicejaram. Pelo conjunto de suas atividades, o ICe recebeu em 2017 o Prêmio Celso Furtado de Desenvolvimento Regional, na categoria “Práticas exitosas de produção e gestão institucional”.

Em paralelo com o trabalho administrativo, foi nesse período que descobri, em fértil colaboração com a psiquiatra Natália Mota e o físico Mauro Copelli, da Universidade Federal de Pernambuco, que a estrutura discursiva dos relatos de sonho possui imenso valor quantitativo para o diagnóstico da esquizofrenia. Essa validação inesperada de outro postulado freudiano (“os sonhos são a via régia do inconsciente”) reorientou parte do meu laboratório rumo ao âmago da psiquiatria, o que tem nos valido reconhecimento nacional e internacional.

Seria bom se pudesse interromper a narrativa neste ponto. Afinal, tive a oportunidade de realizar alguns dos meus melhores sonhos. Mas como ficar Odara se a barra pesou em todo o planeta e sobretudo aqui? Como aceitar o desmantelamento progressivo da educação, saúde, ciência e cultura? Como engolir propostas radicais de restruturação administrativa sem estimativa de impacto nem construção de consensos, tais como fundir CNPq e Capes, ou extinguir a Finep? Como aceitar o contingenciamento de fundos constitucionais, a incerteza das bolsas da pós-graduação e a retomada da evasão de cérebros? Como deglutir a humilhação injustificada de órgãos técnicos como INPE, ICMBio e IBAMA? A opção preferencial pelos hospícios e presídios? A tóxica guerra às drogas? As queimadas na Amazônia, o óleo no coral? E o pior de tudo: a perseguição, encarceramento e extermínio de índios, pretos, pobres, favelados, mulheres, gays, jovens e divergentes em geral? O elogio da mentira, o terraplanismo, o máximo cinismo, o anti-cristianismo fingido de simplício nesses tempos tão milícios?

O paradoxo é gritante. Nunca antes tivemos tantos meios para melhorar o mundo. Mesmo assim, insistimos em não ver horizontes, num desespero que escancara a perda de nossa capacidade de sonhar. Nesse Natal é preciso relembrar que os caminhos para o progresso social são harmonia, cooperação, generosidade, perdão e respeito profundo: pelas pessoas e pelo conhecimento.

Precisamos de verdadeiro espírito cristão e muita imaginação, tanto para vislumbrar com nitidez o pesadelo que se avizinha, quanto para sonhar tudo que podemos ser do bom e do melhor do sal da vida, do Sol de amor e alegria que nosso povo traz no coração. Ou parimos a verdadeira alma brasileira ou ela nos devora. E esse sonho – ou pesadelo – é agora.

Sidarta Ribeiro, professor titular e vice-diretor do Instituto do Cérebro da UFRN, diretor da SBPC e membro da coordenação científica da Plataforma Brasileira de Drogas.

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